Bahia

DESIGUALDADE

O vírus que tirou a máscara da desigualdade social

Semiárido brasileiro é uma das regiões mais prejudicadas com desigualdade estrutural no país

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Desigualdade vivenciada no semiárido se agrava com a pandemia do novo coronavírus. - Rafaella Sabino

O novo Coronavírus que afetou o mundo nestes últimos meses, causando uma pandemia com alto risco de contágio, ajudou a descortinar outro grande mal que já existia e que também ameaça a vida de milhões de pessoas: a desigualdade social. No Brasil, esta realidade perversa que afeta milhões de brasileiras e brasileiros, revelou o quanto é urgente retomar este debate e a luta pela implantação de mudanças necessárias para a reparação destas diferenças danosas.

Essa desigualdade tem raiz na história em que o país foi construído, desde a invasão dos portugueses, com o genocídio indígena, escravidão do povo negro e implantação do latifúndio até o sistema político atual que reforça estas desigualdades. Essa naturalização da exploração da maioria e o enriquecimento de uma minoria que domina o sistema financeiro, mostra-se insaciável no desejo de acúmulo, castigando e explorando não só as pessoas, mas também da natureza e a sua biodiversidade.

O professor José Hermógenes Moura da Costa, que é antropólogo, mestre em Ciências Sociais e doutor em Sociologia, destaca que essa desigualdade é estrutural, com modelo consolidado no ocidente e modo de produção capitalista, que se divide entre os que tem o capital e mandam na força produtiva e a maioria que é desprovida de qualquer poder, restando apenas a sua força de trabalho, que é trocado por um salário, que nem sempre supre as necessidades de sobrevivência. No Brasil essa desigualdade se categoriza não só com a diferenciação de classe, mas também de raça e de gênero, ficando mais desprovidas as pessoas negras e mulheres.

Descreve o professor: “Quando nós estamos pensando em um país como o Brasil, essa desigualdade é de classe, ou seja, aqueles que possuem os meios de produção e aqueles que não possuem, tendo apenas a sua força de trabalho que vai vender, mas ela também é atravessada e existe uma interseção que não podemos perder de vista que é com as categorias raça e gênero. E essa diferenciação se traduz entre desvantagens e privilégios para determinados grupos, que no nosso caso ela não é só de classe, ela é também, e sobretudo, de raça e gênero”.

Segundo o relatório divulgado em 2019 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) o Brasil ocupa a 7ª posição de país mais desigual do mundo, ficando atrás apenas de países da África. Em 2018, os 10% mais ricos detinham uma renda 13 vezes maior que 40% dos mais pobres. A atual posição que o país ocupa reforça o quanto é consolidado este sistema que ajuda a ampliar a distância entre os desfavorecidos e privilegiados.

Nos últimos 6 anos, mais de 4,5 milhões de brasileiros e brasileiras foram empurrados para a extrema pobreza, passando a somar um número assombroso de 13,5 milhões de miseráveis no país, cuja maioria são pessoas negras, segundo IBGE (2019). No entanto, se por um lado cresceu o número de pessoas pobres e miseráveis, por outro teve também o crescimento de 18% dos lucros das 4 maiores instituições bancárias do país, com seus ganhos acumulados de R$ 81,5 bilhões apenas no ano de 2019.

Seminário brasileiro é prejudicado

Sabe-se que a configuração desta desigualdade no país também está dividida por regiões, sendo o Semiárido Brasileiro uma das mais prejudicadas com esse sistema. Para Cicero Félix, coordenador estadual da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA-BA), esta desigualdade presente nesta região segue esta mesma linha cronológica do Brasil, sobre isso ele relata: “essa região, desde a chegada dos portugueses invasores, sempre foi vista como uma região problema, de negação, de pobreza, de miséria, dos incapazes (…) uma região vista apenas como uma reserva de mão de obra escrava para as fazendas, ou depois de tempo, como mão de obra barata para a construção civil no centro sul do Brasil. Ou seja, a história de injustiça social desta região tem mais de 500 anos”.

Para piorar esta realidade, o atual governo federal fez ajustes bilionários nas políticas públicas, diminuindo ou cortando investimentos nas áreas de saúde, educação, habitação e outros programas sociais necessários para construção mínima de reparação social e superação da pobreza e desigualdade. Somado a isso, em 2016, foi aprovado o congelamento dos gastos públicos por 20 anos. Sobre isso Félix lembra: “a partir do golpe de 2016 a elite brasileira iniciou um processo de desmonte das políticas públicas importantes para reduzir as desigualdades no Brasil. Nós podemos e devemos destacar a aprovação da PEC da morte. Que se trata da emenda constitucional que congelou o investimento em saúde e educação por 20 anos. Reduzindo recursos públicos para essas duas áreas tão importantes para todo o Brasil, mas principalmente para essa região Semiárida. Outra ação de desmonte das políticas públicas foi o fechamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que cuidava das políticas de apoio e fortalecimento da agricultura familiar no Brasil, e, principalmente, no Semiárido Brasileiro.”

Este descompasso de renda, atrelado a deficiência de políticas públicas que alcance e contemple os que mais necessitam desse amparo do Estado, amplia mais ainda a desigualdade social, conforme descreve a psicóloga Eugamma Coelho da Silva, que atua em um Centro de Referência Social (CRAS), em Juazeiro (BA). “A desigualdade social afeta a vida das famílias sobretudo na precarização do acesso às políticas públicas. A gente acompanha muitas famílias que, por exemplo, chegam pra gente com queixa de falta de vaga na escola. Elas se dirigem a escola pública, que estão superlotadas, e ai não há vagas para o menino na escola e se não há vaga: ‘como é que fica meu bolsa família?’ [questiona a família]. Então para além do prejuízo no ensino-aprendizagem, há o medo do financeiro, de ficar prejudicada no bolsa família, e isso prejudicar a alimentação dos membros familiares”, aponta Eugamma.

A desigualdade também reflete na negação dos direitos fundamentais à vida digna, como exemplifica Coelho, “outra questão é que há muitas famílias que vivem em invasões, por falta de acesso à moradia, elas são impelidas a morar em regiões afastadas, em regiões não autorizadas pelo poder público, não legalizadas, por isso são áreas que não tem cobertura, sobretudo da saúde. Então a UBS (Unidade Básica de Saúde) tem dificuldade de acompanhar esta família, não há agente de saúde para acompanhar essas famílias e os atendimentos também ficam prejudicados”.

Com estas contradições sociais e os profundos cortes e ajustes fiscais implantados, que reduz o papel do Estado e entrega os bens públicos ao setor privado, era notório que com a chegada do Covid-19 no Brasil, que afetou economicamente até os países mais desenvolvidos, o impacto seria maior e os pobres seriam os mais atingidos.

O vírus mostra outras necessidades

Em março deste ano, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o Coronavírus tinha se tornado uma pandemia, logo também surgiram as orientações de cuidados, prevenção e necessidade de isolamento social. Este cenário tirou a máscara que ainda encobria a profunda desigualdade do país, pois para milhares de pessoas que não tinham condições econômicas, renda fixa e nenhum amparo social, “ficar em casa” mesmo que por poucos dias e não sair para trabalhar era ver faltar até a alimentação básica para a família.

Com isso, surgiram diversas campanhas de solidariedade, que tem como ação levar alimentos para estas pessoas, cuja maioria residem em áreas precárias de serviços públicos, com ruas mal estruturadas, esgotos a céu aberto, casas pequenas e famílias grandes, mostrando que a falta de comida apareceu onde outras necessidades básicas de vida digna já faltavam há muito tempo.

A pandemia sem dúvidas traz impactos profundos, pois além das vítimas diretas, tem as que já eram marginalizadas e viviam na vulnerabilidade social causada por este modelo de sociedade, e caso não haja um plano de ação urgente e consolidado, pautado na superação da pobreza e redução da desigualdade, teremos um abismo social ainda maior.

Para superar estes desafios no Brasil, será necessário considerar as especificidades e intensificação da pressão popular. Sobre isso, o professor Hermógenes provoca: “como é que a gente vai fazer com esse Brasil, que é plural, que é múltiplo? E esse múltiplo que infelizmente é desigual. Como é que a gente faz com que tenha essa igualdade, mas nessa diferença? Como é que faz para ter equidade? Essas coisas só vão ser conseguidas com muita luta. Esse repensar necessário da sociedade, ele só vem se a gente empurra a porta. (…). Até porque, no nosso caso, essa desigualdade já é naturalizada. A gente não tem como pensar desigualdade no Brasil, distribuição de privilégios, acesso ao capital cultural, acesso ao capital econômico, sem discutir a questão de raça e as relações que ela tem com o gênero e com a classe”, questiona.

Esta crise sanitária trazida pelo Coronavírus, mostrou quão necessária é a reorganização do papel do Estado e sua responsabilidade não só nas políticas de saúde, mas também no bem-estar social, cuja as estruturas só serão mudadas com a participação e organização popular, cobrando, lutando e apontando outro modelo de sociedade que não deixe de fora a questão racial, de gênero e respeito a natureza e modo de produção cujas riquezas geradas sejam compartilhadas em fatias mais justas.