Com a data de realização do Enem mantida, estudantes, educadores e organizações demonstram preocupação com os impactos negativos para uma parcela de estudantes que não têm condições de seguir com os estudos normalmente durante a pandemia de COVID – 19. Conversamos com pesquisadoras da Educação, professora e estudante da rede pública da Bahia para saber o que pensam e como se sentem diante do cenário.
pressupor que o Enem pode seguir um curso de ‘normalidade’ é demonstrar enorme indiferença para com a realidade da sociedade brasileira
Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante, doutora em Educação e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS - BA), pontua que: “pressupor que o Enem pode seguir um curso de ‘normalidade’ é demonstrar enorme indiferença para com a realidade da sociedade brasileira, em sua característica marcante de desigualdade social, diversidade regional e segregação sócio espacial (periferia, campo e cidade). No momento em que milhões de pessoas se encontram em situação de risco e extrema vulnerabilidade social, na qual os jovens estão envolvidos, como acreditar que se pode manter um ritmo de estudo e preparação para o Enem de forma equitativa?”.
Pesquisadora de Educação do Campo, com foco no acesso de mulheres dos contextos rurais, e professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Tatyanne Gomes Marques, argumenta que manter o Enem na mesma data do período sem a pandemia evidencia um processo de interdição do acesso à universidade. “Por mais que a gente tenha conquistado o direito à Educação em todos os níveis, a partir da Constituição de 1988, esse direito é interditado o tempo inteiro. E o Enem, principalmente no modo como está proposto para ser esse ano, causa ainda mais essa interdição para as classes populares, para os jovens negros, periféricos, das comunidades rurais, porque esses jovens, e adultos também, que desejam adentrar a Universidade e que não vão ter as mesmas condições de preparo que as classes médias e a elite vão estar em condições ainda mais desfavoráveis que em outros anos. Veja que essas condições no Brasil nunca foram equânimes, mas, nesse momento, elas se agravam”, argumenta.
A própria inscrição no Enem era motivada em sala de aula, com visitas às universidades da cidade vizinha (Barreiras), com mutirão para não perderem o prazo
Mileia Santos de Almeida é professora no Colégio Estadual Presidente Médici, localizado no município de São Desidério, oeste da Bahia. Ela explica que os impactos da pandemia de COVID-19 para suas alunas e alunos são vários. “O ano letivo já foi comprometido e muitos conteúdos não foram vistos de forma presencial, e nem mesmo em modalidade de ensino à distância. A grande maioria não tem acesso a formas de estudo on-line, não têm computadores e, às vezes, nem um celular com internet. A própria inscrição no Enem era motivada em sala de aula, com visitas às universidades da cidade vizinha (Barreiras), com mutirão para não perderem o prazo. Sem esse contato direto, provavelmente o número de inscritos estará bem defasado esse ano. Ainda que nós professores nos esforcemos para enviar materiais e manter o vínculo com a escola durante a quarentena, o cenário é de desmotivação e falta de perspectiva”, afirma.
Aluna de Mileia, a estudante Amanda Felix, que cursa o 3° ano do Ensino Médio no colégio já citado, acredita que a atitude de manter a data de aplicação do exame não pensa em todos os estudantes. “Nem todos nós temos acesso à internet, às aulas on-line etc. A atitude pensa em uma parcela dos estudantes e isso não é priorizar a educação de todos. Até mesmo quem está em aulas virtuais têm tido dificuldades, porque, mesmo com as lives dos professores, fica com dúvidas e precisa do professor em corpo presente”, observa.
Ela conta que sua rotina de estudos está sendo difícil. “A única forma que a gente tem de estar mais próximo da escola é pela internet. Como eu sou na zona rural para mim é difícil, porque a internet aqui é falha, não tem sinal bom. Busco ao máximo baixar os roteiros que a escola manda e mando mensagens por WhatsApp para os professores quanto tenho uma dúvida. Mas não tenho conseguido assistir tantas aulas no Youtube, por conta do sinal que é fraco”, explica a estudante.
para nós que somos da zona rural não está tanto ao nosso alcance essa questão de aulas em vídeo
Amanda observa que sua escola tem feito o que pode dentro das possibilidades. “O que está sendo possível fazer é os professores baixarem videoaulas e mandarem para nós. Elaboram roteiros de estudos e enviam. Mas, para nós que somos da zona rural não está tanto ao nosso alcance essa questão de aulas em vídeo”, explica. Ela argumenta também que não ter a professora presencialmente é ruim e reflete que há uma diferença entre o que a sua escola pode oferecer em comparação com outras escolas. As [escolas] particulares, por exemplo, estão dando mais apoio aos alunos, porque todos têm acesso à boa internet. Então eles podem ter acesso às aulas com os professores on-line e todo mundo da turma. Minha escola não pode ter isso, visto que uma grande parte dos alunos são da zona rural”, conclui.
O Enem é a porta de entrada para a transformação da realidade desses estudantes e de suas famílias e, por isso, deve ser visto como uma política pública de inclusão, e não como um teste meritocrático
Convergente com o contexto brasileiro, no que diz respeito a educação, o estado da Bahia apresenta condições de acesso desigual ao ensino. A partir da sua experiência, Mileia Santos revela: “A Bahia é um estado com enorme extensão territorial e desigualdades regionais, o que dificulta até mesmo seguir um calendário letivo homogêneo. Nossos estudantes enfrentam realidades diferentes, precisando conciliar estudos, cuidados domésticos e trabalho. Muitos mal sabem da existência de universidades públicas ou foram incentivados a sonhar com elas. Temos problemas estruturais que vão desde falta de recursos nas escolas, salas superlotadas, às condições socioeconômicas que levam estudantes a terem a merenda como única refeição. O Enem é a porta de entrada para a transformação da realidade desses estudantes e de suas famílias e, por isso, deve ser visto como uma política pública de inclusão, e não como um teste meritocrático”.
Edição: Elen Carvalho