“Apartheid disfarçado todo dia / Quando me olho não me vejo na TV / Quando me vejo estou sempre na cozinha / Ou na favela submissa ao poder”. (Adão Negro)
Assim começa uma música da banda de reggae baiana Adão Negro, trazendo a realidade daquelas que, segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, representam 25% da população brasileira, que tem importância fundamental na produção e reprodução da vida no país, mas se encontram na base da pirâmide social: as mulheres negras. Se é fato que no Brasil, há desigualdades estruturais relacionadas à raça e gênero, quando falamos das mulheres negras, implica que sofrem duplamente com tais desigualdades.
Com dados do censo de 2010, o IBGE aponta que a taxa de analfabetismo entre as mulheres negras é mais de duas vezes maior que entre as mulheres brancas. Com relação a questão salarial, a pesquisa “Retrato das desigualdades de gênero e raça - 20 anos”, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), revela que o salário médio de mulheres negras de 1995 a 2015 equivalia a 40,9% do salário de um homem branco. O Atlas da Violência de 2018 do IPEA, aponta que o feminicídio (assassinato de mulheres em contexto de ódio e discriminação de gênero) de mulheres negras nos últimos 10 anos aumentou 15%, enquanto o feminicídio de mulheres não negras diminuiu 8%.
Porém, se é verdade que a vida das mulheres negras é marcada por inúmeras desigualdades, exploração e dificuldades, é fato que luta e resistência está presente em toda a trajetória, desde que aqui chegaram a partir do tráfico de negros e da escravidão. Resistir e lutar para as mulheres negras nunca foi uma escolha, mas uma necessidade.
Conversamos com Maria Abade, liderança quilombola, da comunidade do Engenho da Ponte, em Cachoeira, no Recôncavo baiano.
Ser uma mulher negra, agricultora, pescadora e liderança de comunidade tradicional
Minha experiência de mulher negra, agricultora e pescadora é de muita luta e resistência. Porque a maioria das comunidades tradicionais, especificamente a comunidade quilombola, porque essa é a minha vivência, tem como lideranças homens. E esse homens vem de um processo muito deles machistas. Então para mim é uma vivência de resistência ter uma mulher negra a frente de uma comunidade quilombola. Se eu disser a você que é fácil, não é. Porque a gente tem que está nessa resistência, nessa lida o tempo todo. E quando a gente não se submete a esse sistema patriarcal, perverso e machista, a gente sofre as repressões e não são poucas. E, às vezes, as pessoas perguntam “e o que faz tu permanecer”? O que me faz permanecer nessa luta e nessa resistência é a luta de minhas antepassadas, porque quando a gente vê em pleno século XXI o que eu ainda passo e o que companheiras minhas passam para resistir nesses espaços de decisão, a gente tem obrigação de seguir. Não podemos desistir, e além de minha gratidão aos antepassados, também tenho obrigação de tentar seguir esse caminho enquanto estiver aqui, para que os que estão vindo depois de mim. Então essa é a minha experiência, muitas vezes de alegria, mas muitas vezes angustiante, porque a gente tem que preservar a memória daquelas que passaram e deixaram um legado, uma história de luta, de resistência, de bravura. Mas ser mulher negra nesse sistema atual é muito difícil. Porque você tem que estar pronta e armada para a luta o tempo todo. Ser mulher negra quilombola é viver numa opressão diária.
Racismo se manifesta no dia a dia e nas condições de vida da comunidade
O racismo faz parte de nossa realidade. Está na educação quando a gente não tem um professor qualificado, quando a gente não vê a educação chegar na comunidade. A gente vê o racismo na saúde, quando você tem que andar 30 Km para chegar em um posto de saúde. O racismo está nas habitações, quando você vê que o povo precisa de moradias dignas, mas essa moradia não chega, quando a gente vê mulheres e homens e crianças, morando em uma casa de taipa ainda, e dá uma chuva no meio da noite, a gente tem que correr para a casa do vizinho. A gente vê o racismo no meio ambiente, quando você vai na maré tirar o seu sustento e não consegue porque as grandes empresas despejam dejetos, porque entendem que as comunidades quilombolas estão ocupadas ilegalmente. Então o racismo para n[os, enquanto povo negro, enquanto povo quilombola, é perverso, tira nosso sonho, tira nossa esperança. O racismo é tão grande que quando a gente vê um tema de Enem sobre a democratização do cinema brasileiro, a gente sabe que não está falando da gente. A gente sabe que a gente é excluído. O racismo é perverso, ele tem nos matado. Mas o povo negro, quilombola vai resistir.
História de resistência, luta e vida que as mulheres quilombolas deixam para a sociedade
O ensinamento é que precisamos avançar e resistir. Nosso maior ensinamento é a preservação, o respeito, a dignidade. Precisamos ocupar os espaços de decisão. É isso que precisamos passar para os que estão vindo, para nossa juventude, nossas irmãs, que precisamos ocupar os espaços de decisão. O importante é que a gente possa decidir o futuro de nossas comunidades, que a gente possa decidir o que estão construindo pra nós. Hoje nosso ensinamento é que toda mulher negra, toda a juventude negra procure se capacitar, qualificar, participar das lutas sociais e populares porque é isso que vai nos fortalecer. O nosso maior legado é que nós possamos avançar, ser escritores de nossa própria história. Chega do povo branco dizer o que somos, o que comemos, o que vestimos. Precisamos assumir as decisões de nossas vidas. Esse é o legado que eu quero deixar para os meus netos, para os meus bisnetos quando eu não tiver mais aqui. Que eles possam lembrar que resistir é preciso, que vamos caminhar sempre e decidir nossas histórias.
Os desafios das mulheres negras no momento político atual
O maior desafio das mulheres negras agricultoras, pescadoras e quilombolas nesse momento atual é viver. Porque se saímos para as roças, a gente não sabe se o agronegócio vai deixar a gente voltar. Se vamos visitar nossas plantações, se vamos para o mar pescar, podemos morrer da mesma forma. Então, o maior desafio hoje do povo preto é viver. Seja por terra, seja por mar, nossa vida corre muito risco. Porque o sistema que está posto é contra nossas vidas. Meu maior desafio é que eu saia para ir na roça, que eu saia pra ir na maré, que saia para qualquer lugar e eu possa voltar viva. Temos vários desafios, mas hoje o maior desafio da comunidade do Engenho da Ponte e outras comunidades é esse: viver, resistir, sobreviver, se reinventar. Porque hoje ou a gente morre de fome e sede, embaixo das casas que estão caindo, ou por falta de acesso. Hoje nosso maior desafio é acordar de manhã e quando chega a noite a gente diz: eu venci mais um dia. E vamos! Avançaremos e seguiremos sempre em luta.
Edição: Elen Carvalho