“Mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”, escreveu Mestre Pastinha (1889-1981) sobre a capoeira no início do século XX, dando voz à liberdade e longevidade de uma arte secular do povo negro brasileiro. Apesar dos poucos registros históricos, sabe-se que a capoeira tem origem entre o século 16 e 17, a partir da conjunção de diversas manifestações culturais africanas, que foram adaptadas à necessidade de desenvolver uma luta de autodefesa e de resistência física e cultural contra a escravidão imposta pelo sistema colonial português.
Não se sabe ao certo onde a prática teve início, se na Bahia, no Rio de Janeiro ou Pernambuco. Mas foi em terras baianas que ela ganhou a força de movimento de libertação e aquilombamento do povo africano e, posteriormente, dos afro-brasileiros. Estima-se, segundo o Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos, que cerca de 1.700.000 milhão de africanos foram trazidos para a Bahia entre os séculos 16 e 19, transformando a região não apenas em um forte pólo escravagista, mas, principalmente, da resistência africana à diáspora. Não por acaso, grandes nomes reconhecidos da capoeira são baianos, a exemplo de Besouro Mangangá (1895-1924), o próprio Pastinha da tradição angola e Mestre Bimba (1900-1974) da tradição regional.
Dava-se o nome de “capoeira” às vegetações rasteiras ou baixas, em meio às matas e plantações, que serviam como refúgio e também onde eram travadas as lutas contra os capitães do mato. A prática da capoeiragem era fortemente reprimida por se tratar de uma arma e por isso, ao longo do tempo, negros e negras passaram a treinar seus movimentos dentro de uma roda aliando dança, música, teatralidade e brincadeiras para disfarçar a atividade. O berimbau, por exemplo, dava ritmo ao jogo, mas também anunciava a chegada de um feitor. E assim, a união desses elementos transformou a capoeira em uma das mais fortes expressões artísticas afro-brasileiras.
Tamanho foi o poder desta arte como instrumento de organização do povo negro, que em 1890, mesmo após a abolição oficial do sistema escravista, ela foi rotulada de “arte negra” e colocada como prática fora da lei pelo Código Penal da República, que dizia em seu Art. 402 ser proibido “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação capoeiragem”. E assim permaneceu até 1930, quando foi apresentada ao então presidente Getúlio Vargas e reconhecida como elemento de identidade nacional.
De lá pra cá, a capoeira passou por muitas transformações e também ganhou o mundo. Em 2008, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) registrou a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira como patrimônios culturais imateriais do Brasil. E em 2014, a Roda de Capoeira recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Hoje, a capoeira continua sendo de fundamental importância em um Brasil ainda marcado pelo racismo e extrema desigualdade social. A professora Jéssica Paranaguá, mulher jovem e negra, há alguns anos treina na Associação de Capoeira Angola Navio Negreiro (Acanne) e explica como a capoeira é ainda uma forma de enfrentar os problemas impostos pelo sistema. “Não é apenas um simples ato de gingar e mexer o corpo. A musicalidade, a historicidade, a forma como a cultura é transmitida para os mais novos pelo mestre. Ali, a gente aprende vários aspectos da cultura de matriz africana, da nossa ancestralidade e se fortalece para poder enfrentar as demandas sociais da atualidade, seja a questão racial, de gênero e sexualidades. A cultura dos marginalizados sempre foi uma forma de se organizar, mas também de ser feliz”, conclui.
No jogo, é preciso sempre iniciar saudando os mais velhos, em sinal de respeito aos mestres e mestras. Por isso, não podemos deixar de reverenciar Mestre Moa do Katendê, que foi assassinado no dia 07 de outubro em Salvador e deixou um legado imensurável não apenas para a Bahia, mas para o mundo. O Novembro Negro vem em tom de luto, com apenas um mês de sua morte, mas sempre de luta. E viva nosso mestre que tanto nos ensinou!
Edição: Elen Carvalho