Olho para as minhas companheiras.
Os ombros amanheceram tensos, parecem carregar o peso do mundo. Nenhuma cabeça encontra-se despreocupada: a casa suja, o cesto cheio de roupas, as disciplinas acumuladas, a bolsa atrasada, as dores silenciadas e a correria constante - porque o bonde não para e o mundo precisa de nós.
Olho para minhas companheiras, estamos todas cansadas.
Exaustas.
As olheiras são profundas e o choro das crianças parece ter ficado preso aos ouvidos, perseguindo a mulher-mãe em cada passo dado, como um fantasma. Os corpos estão rígidos, em estado de alerta sobre os gritos da noite passada. As marcas no corpo denunciam os socos dos homens, e o estômago embrulha só de lembrar as ameaças que o mundo já lhes fizera, e os estupros que ninguém sabe. Mas ainda que viver seja difícil, o feminismo nos convence todos os dias a estar em movimento, em marcha e em luta até que todas sejamos livres porque nenhuma de nós cairá.
Olho para as minhas companheiras e sinto o mesmo medo: de ser mais uma vítima dos abortos clandestinos e da fatalidade de sermos mães quando agora tudo que profundamente queremos é construir o futuro que sonhamos, com autonomia e possibilidade de escolha. Mas, uma coisa é certa: estaremos aqui, umas pelas outras. Nenhuma de nós cairá.
O governo declara: a vida de nenhuma delas vale à pena. As pequenas conquistas nos foram arrancadas, e já não temos mais o que nunca tivemos verdadeiramente: jornais anunciam que não há mais creches, as escolas públicas foram privatizadas, acabou a merenda e o intervalo para o almoço nas 12 horas de jornada de trabalho diária. O salário atrasou, o aluguel venceu e nenhuma dúvida resta sobre a demissão, quando descobrirem sua segunda gravidez.
A ponta da lança já estraçalhou nossa carne, a mais barata do mercado, corpo mercantilizado, sofrimento abafado, existência silenciada. Tentam abaixar as nossas cabeças de mulheres negras, mas nos reerguemos pelos braços de outras mulheres, em nossa certeza feminista de que nenhuma de nós cairá.
Os dias têm sido difíceis, acirrados, polarizados. Há dias desesperança, em que a barriga pesa e parece haver um buraco no coração, um vazio que o mundo capitalista nunca permitirá que se feche. Há dias em que o amor parece um conto da carochinha que a gente acabou caindo e a vitória está tão distante, quase inalcançável. Há dias em que a cama é mais confortável do que as ruas e lá cabe toda a nossa existência, não importando a contradição individualista que isso signifique porque a gente sabe, mas ainda assim acaba caindo. Há dias que os silenciamentos se tornam farpas, ferindo e sangrando por dentro, outros em que nos fazem acreditar que somos loucas e tiram de nós as certezas que construímos, destruindo cada pedaço que tanto suamos pra ser.
Mas há dias, outros tantos e tantos dias de resistência e convicções. E eu olho para as minhas companheiras e sinto a revolução pulsando no corpo, nos gestos, nas vozes, na postura e na firmeza de cada uma delas, sinto-me mulheres - e nossos ombros já não pesam tanto. As lágrimas derramam e se encontram, como nós nos encontramos, feito cachoeira.
Olho para as minhas companheiras, algumas estão grávidas de sonhos, outras acabaram de parir e outras já alguns anos estão aprendendo a ser mães, irmãs, filhas e netas da esperança do novo mundo, tornando-se novas mulheres outra e outra vez a cada dia.
Os olhares atentos, o corpo pronto para o combate, as mãos fechadas em punho, a voz na boca da garganta, prestes a fazer-se em rebeldia, com a nossa maior convicção em tempos cruéis:
O sistema patriarcal-racista tentará nos derrubar,
mas em nossa certeza feminista ousamos afirmar:
nenhuma de nós cairá.
*Militante do Levante Popular da Juventude de Salvador/BA
Edição: Elen Carvalho