Bahia

Coluna

Arenas de disputa: o desafio da participação cidadã na Região Metropolitana de Salvador

A participação social nas decisões sobre a cidade ainda é um desafio para Salvador - Reprodução/CMS
O Plano Diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana

Claudia Monteiro Fernandes – doutora em Ciências Sociais e pesquisadora do Observatório das Metrópoles
Diego Matheus Oliveira de Menezes – doutor em Ciências Sociais e pesquisador colaborador do Observatório das Metrópoles

Dando continuidade ao debate de temas importantes para contribuir com as propostas eleitorais municipais em 2024, apresentamos duas experiências de participação social cidadã na capital baiana e nos municípios de sua região metropolitana. Desde o início do século XXI, tem sido cada vez mais colocada a necessidade de ampliação dos espaços de participação cidadã como forma de regular o fazer político, além de legitimar projetos, programas e políticas públicas para as metrópoles brasileiras. A efetiva participação social é um grande desafio dada a tradição de centralização, hierarquização e autoritarismo das gestões públicas do estado e da metrópole baiana. Algumas experiências participativas aconteceram nos últimos anos, ainda que de maneira bastante limitada, e podem ser inspiração para ampliar o debate público no sentido de sua reformulação e aperfeiçoamento.

As dificuldades na concretização da participação cidadã nos espaços de planejamento e deliberativos da região metropolitana de Salvador estão relacionadas com as divergências e disputas de diferentes projetos políticos que se contrapõem, impedindo a continuidade de processos que vêm acontecendo, com muitos contratempos, ao longo do tempo. Vamos falar um pouco aqui de duas experiências importantes: a participação na elaboração do PPDU e do Plano Salvador 500, e no Fórum de Pós-Ocupação da Região Metropolitana de Salvador.

O Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles acompanhou a elaboração dos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano (PDDU), definidos pelo Estatuto da Cidade como um dos instrumentos básicos para o alcance de uma gestão democrática e do direito à cidade pelo conjunto da população, abordando, mais especificamente, essa participação no caso de Salvador. Analisando os últimos planos diretores, foi possível constatar como os processos participativos na capital baiana são, ao mesmo tempo, incorporados e esvaziados, cumprindo apenas por pura formalidade o que está definido desde 2001 no Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001). Em contextos conservadores e autoritários, um padrão de gestão e desenvolvimento voltado para a mercantilização do espaço urbano vem tendendo a se atualizar e se ampliar nas cidades e metrópoles do país.

Ainda que o Estatuto das Cidades defina, no seu artigo 2º, que a política urbana deva ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade, estimulando a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”, já são mais de 20 anos sem que a forma como se dá essa participação atenda às demandas da sociedade. São diferentes modelos de participação que têm em comum, no contexto conservador e autoritário da metrópole baiana, a abrangência restrita, tutelada e controlada, assim como a baixa aplicação das deliberações construídas coletivamente nos processos participativos.

O Plano Diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana e é obrigatório para os municípios com mais de vinte mil habitantes e que façam parte da região metropolitana. No caso de Salvador, a incorporação dos princípios do Estatuto e a participação da sociedade civil na elaboração do PDDU têm sido formalmente reivindicada desde sua versão de 2004, quando organizações da sociedade civil acionaram o Ministério Público para entrar com uma ação civil pública contra o plano então aprovado, e essas pressões levaram a gestão municipal a decidir pela sua revisão. Seja na revisão do Plano Diretor de 2008 ou entre os anos de 2015 e 2016, a trajetória e resultados não se mostraram muito diferentes das experiências anteriores.

A estratégia de participação proposta pela Prefeitura de Salvador evoluiu para o chamado Plano de Mobilização e Participação Social (PMPS), de 2015, que ele mesmo não foi discutido de forma participativa e não chegou a ser publicado, assim como não foi participativa, na ocasião, a elaboração de um prometido plano estratégico de longo prazo, o chamado “Salvador 500”. Instrumentos que, em tese, seriam, interessantes, como oficinas de bairros, fóruns temáticos e audiências públicas foram pouco divulgados, tiveram mobilização precária, duração muito curta, ocorreram em horários que impediam a participação de trabalhadores no processo e pecaram pela orientação de decisões com base em documentos de trabalho complexos e extensos – alguns chegaram a ter entre 300 e 500 páginas. No início da construção do plano estratégico “Salvador 500”, a elaboração de documentos temáticos foi terceirizada a empresas de consultoria, muitas delas de fora de Salvador, que pouco ou nada utilizaram a construção coletiva que resultou de processos participativos até então precariamente realizados.

A pressão de organizações sociais levou à constituição do grupo “Participa Salvador”, uma parceria entre Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) e Rede de Profissionais Solidários pela Cidadania, membros do Movimento Vozes de Salvador, ambos (Rede e Movimento) participantes do Fórum ‘A Cidade Também É Nossa’. O grupo Participa Salvador reivindicou a ampliação da divulgação das audiências públicas por canais de comunicação de massa e o aumento da duração das audiências, e permitiu a criação de outros espaços de participação, como as oficinas lideradas pelo MP-BA e o Fórum de Contribuições do Participa Salvador.

Apesar dos avanços, o Participa Salvador considerou que não houve participação efetiva da sociedade, com desrespeito ao diálogo entre governantes, técnicos municipais, cidadãos e a sociedade civil organizada, falta de articulação intersetorial, e problemas técnicos nos cenários, metas e controle social do plano. Ainda assim, a prefeitura enviou o anteprojeto de lei para a Câmara de Vereadores em novembro de 2015, de maneira considerada precipitada e o MP-BA judicializou o Projeto de Lei em março de 2016.

Representantes da Federação das Associações de Bairros de Salvador (Fabs) e do Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB) indicaram, por exemplo, que o PDDU incorporou muito pouco em termos do que foi proposto nos processos participativos e que o capital imobiliário pautou e direcionou as principais diretrizes. Houve o aumento do número de Zonas de Interesse Social (ZEIS) e o registro da chamada “cota solidária”, que orienta os promotores de grandes intervenções urbanas a contribuir com programas de habitação de interesse social. As ZEIS são áreas da cidade destinadas à moradia popular, onde a prefeitura deve fazer a regularização dos terrenos e a urbanização, levando em conta as necessidades de cada comunidade. Salvador possui 234 ZEIS estabelecidas no PDDU de 2016, o que corresponde a 56% da população residente na capital. No entanto, apesar da incorporação desses itens que conceitualmente colaboram com maior equanimidade urbana, não ficaram claros os critérios e o processo de aplicação destes. A questão racial e a segregação espacial passaram ao largo do plano.

Entre 2017 e 2020, novos estudos temáticos foram contratados, desta vez com maior presença de especialistas baianos e soteropolitanos, sob a coordenação da Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF). Foram elaborados e publicados os cadernos do Plano Salvador 500, a saber: 1) Caderno Sociedade, Economia e Território; 2) Caderno Cenários; 3) Agenda do Plano. Novos Fóruns e audiências públicas foram realizados, e alguns temas como segregação espacial e desigualdades raciais foram incorporados. Mesmo assim, muitos dos problemas históricos permanecem, tais como: ausência de ampla discussão devolutiva após a publicação dos cadernos, falta de articulação entre as diferentes áreas setoriais da própria gestão municipal, ausência de articulação política na esfera metropolitana intermunicipal; ausência de instrumentos de monitoramento e avaliação de políticas e projetos. Esses e outros “pecados” foram amplamente indicados desde a divulgação do projeto de Lei em 2016.

Em dezembro de 2023, o MPE realizou uma rodada de debates com representantes da academia, movimentos sociais e especialistas, pensando na retomada da discussão sobre a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) neste ano de 2024, com o principal objetivo de assegurar o direito à participação cidadã no processo. É de fundamental importância o debate sobre o tema nas propostas eleitorais que serão apresentadas neste ano.

As experiências de participação social no âmbito local, em sua maioria, se organizam a partir do município, sem significativo esforço para integração da região metropolitana em uma discussão comum. É necessária a inovação e experimentação para a construção de arranjos participativos que conectem a sociedade civil e o poder público dos diversos municípios da Região Metropolitana. Um interessante esforço coletivo que pode servir de exemplo é o Fórum de Pós-Ocupação da Região Metropolitana de Salvador, um espaço inovador criado na Bahia a partir de diálogo iniciado, em reuniões da Câmara Técnica de Habitação do Conselho Estadual das Cidades da Bahia (Concidades/BA), entre lideranças do movimento de moradia, técnicos da Caixa Econômica Federal e gestores estatais.

A motivação para o início do Fórum ocorreu em decorrência da dificuldade dos moradores de empreendimentos da Faixa 1 do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) em acessar a infraestrutura urbana adequada. Ao demandar resoluções para essa problemática, as lideranças dos movimentos sociais perceberam a escassez de informações e a inexistência de uma articulação efetiva entre o poder público capaz de solucionar as demandas apresentadas.

Na época, em 2013, conselheiros do Concidades/Bahia se reuniram na Caixa Econômica Federal com representantes de empresas públicas, secretarias estaduais e municipais e movimentos sociais. A série de reuniões passou a ter periodicidade semanal sendo formatada como experiência permanente, ainda em 2013, contando com representantes do Governo Estadual, da Caixa Econômica Federal, de organizações do movimento de moradia, como a União de Moradia da Bahia (UMP/BA), a Frente de Luta Popular (FLP), o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), o Movimento de Sem-Teto de Salvador (MSTS), a Central dos Movimentos Populares (CMP), a Federação das Associações de Bairro de Salvador (FABS) e o Movimento em Defesa da Moradia e do Trabalho (MDMT), e representantes do poder público municipal de Salvador, Lauro de Freitas, Dias d'Ávila, Simões Filho, Candeias e Camaçari.

Inicialmente, questões como acesso aos correios, déficit de serviços públicos, segurança, oportunidades para a geração renda e inexistência de transporte público nas proximidades, foram os principais temas tratados nas reuniões. Em 2013, o Fórum organizou uma ação no empreendimento Condomínio Bosque das Bromélias V, localizado em Salvador, com a presença de órgãos estatais para a prestação de serviços, levantamento de demandas e estreitamento de vínculos com as lideranças e síndicos. Nesse mesmo ano, em parceria com a Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), foi articulada uma série de visitas técnicas nos empreendimentos Condomínio Residencial Pirajá e Condomínio Residencial Lucaia, em Salvador, e nos Condomínios Lauro de Freitas A, B e C, em Lauro de Freitas, com o intuito de integrar os empreendimentos em ações de geração emprego e renda, em especial com agricultura urbana.

O avançar do diálogo possibilitou o amadurecimento da discussão superando um enfoque apenas em resoluções de déficits nos empreendimentos ao conectar as problemáticas localizadas com um projeto mais amplo sobre o papel do Estado em garantir saúde, educação, lazer, infraestrutura, emprego e renda, segurança, mobilidade urbana e qualidade de vida para os beneficiários de programas que possibilitam o acesso à moradia.

A perspectiva que originou e consolidou o Fórum está relacionada com a ideia de que o acesso à moradia faz parte de uma trajetória de disputa política que não pode ser finalizada até a garantia do direito à cidade. Esse enquadramento foi denominado pelos envolvidos como a “luta pela pós-ocupação”, tendo em vista a necessidade de continuar a mobilização, pressão e diálogo para a garantia da moradia digna, mesmo após a ocupação dos empreendimentos.

Além disso, o pós-ocupação também se apresenta como um desafio para os técnicos e gestores estatais comprometidos com o direito à cidade, pois, apesar da significativa e importante ampliação na garantia de moradias, as capacidades estatais se demonstraram insuficientes para responder às rápidas transformações do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) na política habitacional. Dessa forma, o pós-ocupação passou a ser um importante momento de disputa sobre os caminhos do PMCMV.

O Fórum de Pós-Ocupação da Região Metropolitana de Salvador, portanto, se tornou um importante espaço para o compartilhamento de estratégias de enfrentamento à nova conjuntura. Em 2014, já possuía logo, frequência semanal de reuniões, jornal próprio e importante articulação com a Comissão de Desenvolvimento Urbano da Alba e com o Conselho Estadual das Cidades da Bahia. Suas ações passaram a ter um desenho bem definido e experiências ocorridas em 2013, como a no Bosque das Bromélias, por exemplo, serviram de projeto-piloto para o “Fórum de Rua”, principal estratégia de ação territorial do Fórum que objetivava estreitar os canais de contato dos empreendimentos com o poder público a partir da prestação de serviços públicos “in loco”.

Sua atuação se manteve, durante aproximadamente 20 anos, devido aos vínculos criados e pela construção de um projeto comum sobre o pós-ocupação. Diferente de instrumentos participativos institucionalizados via políticas públicas específicas, o Fórum não possui reconhecimento formal vinculado por lei. Em outras palavras, sua existência demonstra a importância dos esforços comuns entre movimentos sociais e técnicos estatais para lidar com a baixa articulação entre as esferas do poder público. A interação desses atores, em um contexto de baixa coordenação entre os diversos setores do poder público dos diversos municípios da RMS, estimulou a construção de uma rede orientada para disputar, dentro e fora do Estado, a implementação de políticas de pós-ocupação. Sua capacidade de atuação se relaciona diretamente com a possibilidade de influenciar atores de outras instâncias.

A estratégia de superar suas limitações com a articulação política com outras esferas tinha relação significativa com o trânsito dos gestores e técnicos da Caixa, participantes do Fórum, na rede mais ampla da empresa e em outras instâncias federais. Por isso, as transformações decorrentes da mudança de conjuntura política com os governos Temer e Bolsonaro tiveram expressivas consequências. As limitações na influência e no diálogo dos técnicos do Fórum com o novo médio e alto escalão federal tornaram necessária a reorientação da experiência participativa. De espaço para coordenação e articulação de soluções para os empreendimentos do MCMV, o Fórum passa a se orientar como rede coletiva para a coordenação da disputa pela pós-ocupação, principalmente com a aposta em ações de formação política e construção de vínculos comunitários entre os atores.

A experiência do Fórum também possibilitou a troca de conhecimento técnico e empírico entre gestores, técnicos e lideranças da sociedade civil. Essa dimensão formativa foi reforçada e aprofundada com experiências de formação política como o Curso de Extensão Movimento Popular e Direito à Cidade realizado entre 2017 e 2018, em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Em 2023, em parceria com o Conselho Estadual das Cidades, uma importante demanda é retomada: a articulação e implementação de um Programa Estadual de Pós-Ocupação. Uma das principais características da versão do Programa que ainda passará por discussão na Câmara, está em assinalar o pós-ocupação como um período iniciado com a ocupação da casa, mas que só é finalizado após efetivação do acesso das famílias à saúde, assistência social, educação, trabalho e renda, políticas culturais, políticas esportivas, lazer, segurança cidadã, transporte e acesso à internet.

Em síntese, as trajetórias do PDDU, do Plano Salvador 500 e do Fórum de Pós-Ocupação evidenciam os desafios e potencialidade da disputa política pela construção da participação cidadã efetiva no processo de planejamento metropolitano em Salvador e região. Em que pese o aprendizado e as experimentações dos atores comprometidos com a reforma urbana, a participação cidadã no pensar a cidade e a metrópole continuam como desafios complexos da nossa democracia.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Gabriela Amorim